Clichés africanos em Photomaton&Vox ou a "estratégia do enigma" - Archive ouverte HAL Accéder directement au contenu
Chapitre D'ouvrage Année : 2015

Clichés africanos em Photomaton&Vox ou a "estratégia do enigma"

Résumé

As primeiras páginas de Photomaton & Vox apresentam o enigma fulcral da experiência poética de Herberto Helder. O autor partilha com os leitores três revelações sucessivas de que foi testemunha: a adolescência como abertura à “significação de tudo”, a escrita como “o acesso a revelações maiores” e por fim a revelação de que somos “os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos” [p. 10-11] . A cada página, Photomaton & Vox deixa-se contaminar pelo enigma: as palavras, os corpos, as imagens, a própria escrita desdobram-se de fragmento em fragmento, cujos títulos estão sempre colocados entre parênteses, como à distância. Cruzando referências autobiográficas, ensaio e linguagem poética, a escrita é definida como uma “vocação criminal” [p. 39], ou seja como uma transgressão fundadora, sempre renovada, que põe o poeta em perigo e suspende o sentido . A África não escapa a esta nebulosa enigmática, e os clichés que a obra nos oferece em nada são os de uma África-cliché. Sempre que a África aparece nestas páginas, surge o campo lexical do mistério e da decifração – essa decifração “incómoda” evocada quando é descrita a sobrevivência num contexto de guerra [p. 28]. Esta atitude, como veremos, também é o fruto de um desconforto voluntariamente procurado, que permite ao espírito manter-se em alerta e não se comportar como aqueles que obedecem às ideologias vigentes como se fossem as únicas a poder dar respostas. Mas além das alusões à guerra e às particularidades tribais, a África é o lugar e o tempo de uma experiência fundadora que explica o mundo. Faz-nos regressar às origens da animalidade humana, através dos símbolos da antropofagia e da magia que ela permite abordar, sem nunca a atingir, a revelação do enigma, à imagem de um evento repleto de uma força misteriosa que o autor nunca deixará de querer decifrar e que alimenta, de acordo com Maria Estela Guedes, o seu mito pessoal : o acidente de viação de que foi vítima em Angola, entre Lobito e Luanda, a 18 de março de 1972. Este acidente está na origem da interrogação presente na citação em epígrafe, sobre a correspondência entre a cabeça e o corpo – como se a imagem deste ser dividido configurasse o enigma essencial da identidade humana. Mais do que um encontro com o outro, é um encontro consigo próprio, com as angústias e as energias fundadoras, que o espaço africano tornaria possível, longe das referências e dos códigos de leitura habituais. Enigma e revelação alimentam assim a duplicidade questionadora do eu frente ao que poderíamos chamar a “matéria” africana de Herberto Helder.I. O enigma: uma estratégia para abordar a matéria africana.II. África, reflexo da angústia.III. A energia do mito africano
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Citer

Sandra Teixeira. Clichés africanos em Photomaton&Vox ou a "estratégia do enigma". Catherine Dumas; Daniel Rodrigues; Ilda Mendes (org.). Herberto Helder : Se eu quisesse enlouquecia, Ofinica Raquel, p. 199-216, 2015, 9788565505796. ⟨hal-04118798⟩
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